O grupo Legião Urbana foi formado em Brasília em 1982 e sua última formação acabou sendo Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Russo (cujo nome de nascença é Renato Manfredini Júnior. O "Russo" foi adicionado em homenagem ao iluminista suíço Jean-Jacques Rousseau, ao filósofo inglês Bertrand Russel e ao pintor francês Henri Rousseau).
Até então cultor de medalhões como Led Zeppelin e Pink Floyd, o baixista Renato Russo descobriu o punk rock em 1977, aos 17 anos, quando outro professor da Cultura Inglesa, um escocês chamado Iain, voltou da Grã-Bretanha falando de "uns tais" Sex Pistols. No ano seguinte, em um dia qualquer, Renato Russo estava na Taberna (um bar em Brasília) e veio descendo um punk, um Sid Vicious loiro, como Renato dizia. Era André Pretórius, filho do embaixador sul-africano no Brasil. Renato chegou nele e a primeira coisa que falou foi: "Você gosta de Sex Pistols?" E ele: "Sex Pistols! Yeah! Jóia!" E começaram a trocar informações. Nisto Renato, baixista, fundou o Aborto Elétrico junto com André, o guitarrista e também com Felipe Lemos, baterista. Eles passavam várias tardes ensaiando as músicas de Ramones, Sex Pistols e Slaughter and the Dogs até a primeira apresentação, em 1980, em um bar chamado "Só Cana". O Aborto Elétrico acabou se tornando o embrião tanto da Legião Urbana (de Renato) quanto do Capital Inicial (de Felipe), junto com o Plebe Rude (de André Müller), a santíssima trindade do rock brasiliense dos anos 80.
A Legião Urbana surgiu após a separação do Aborto, que ainda teve como componentes Ico-Ouro Preto e Flávio Lemos (também Capital Inicial). Esse grupo - rápido e barulhento, fortemente influenciado pelos Stooges e pelos Sex Pistols - sofreu com o entra-e-sai dos seus integrantes e, por isso, nunca chegou a um disco próprio. Contudo, algumas de suas canções foram posteriormente gravadas pela Legião (como Geração Coca-Cola e Conexão Amazônica) e pelo Capital (Veraneio Vascaína e Fátima). O público da banda era relativamente grande, principalmente na parte dos jovens estudantes. Porém André Pretorius teve de servir o exército da África do Sul, naquela época envolvido na manutenção do regime de apartheid após ter feito um único show com o grupo. Assim então entrava na banda Flávio Lemos para tocar baixo, com Renato assumindo a guitarra deixada por Pretórius. Este voltaria ainda em 1980 para umas férias em Brasília participando dos ensaios cruciais das músicas supra-citadas neste parágrafo. Sua vida teve fim em 1985 ao morrer vítima de uma overdose nos Estados Unidos. Voltando para a história do Aborto, este viveria seu auge no ano de 1981, fazendo diversos shows com outras bandas, e tocando também em um sem número de festas, colégios, etc.. No meio deste ano, Ico-Ouro Preto entraria para assumir a guitarra, deixando Renato livre apenas para os vocais. Entretanto, o grupo acabaria definitivamente por causa de uma briga relacionada à música Química entre Renato e Felipe, em março de 1982. O clima já estava ruim entre eles, mas aquilo para Renato, que já sonhava em gravar um disco enquanto Felipe preferia o amadorismo, foi a gota d'água.
Foi nessa época que Renato, então estudante de Jornalismo na UnB, transformou-se. Era agora "O Trovador Solitário" que, sozinho ao violão, interpretava composições próprias, como Eduardo e Mônica e Química. Curiosamente foi uma fita dessa fase que chegou aos ouvidos do então diretor-artístico da EMI-Odeon, Jorge Davidson, que durante algum tempo julgou ter nas mãos um grupo folk. Ao mesmo tempo dessa fase, Renato foi contratado por uma rádio de Brasília para comandar um programa de jazz. Só que ele não podia ver um microfone em sua frente. Entre uma música e outra, descarregava sua metralhadora verbal, contando histórias sobre a dependência de drogas e Chet Baker e outras amenidades no programa que pretendia servir de fundo musical ao almoço da elite brasiliense. Os produtores da rádio tentaram, então colocá-lo para dirigir um programa sobre os Beatles. Um pouco mais de um ano depois, Renato alugou uma sala no edifício Brasília Rádio Center para tocar um novo projeto com o baterista Marcelo Bonfá. A eles se juntaram o tecladista Paulo Paulista e o guitarrista Eduardo Paraná. Este, no entanto, tinha um defeito grave para uma banda que, embora quisesse distância da zoeira, ainda estava imbuída do espírito punk: Paraná solava demais. "E nos éramos contra", lembrava Renato. Ico Ouro-Preto o substituiu, assumindo a guitarra por um certo tempo, mas acabou abandonando o grupo, em abril de 1983, às vésperas de um importante show agendado no auditório da Associação Brasileira de Odontologia. Dado Villa-Lobos foi convocado às pressas para segurar a guitarra. Aprendeu nove músicas em duas semanas e fez o show. Foi como um trio - Renato, Bonfá e Dado - que se cristalizou a formação da Legião Urbana.
A Legião tornou-se conhecida mesmo quando começou a tocar fora de Brasília participando de shows como os do Circo Voador no Rio de Janeiro na noite de 23 de julho, que também contou com Lobão e Capital Inicial. Suas primeiras canções eram, como já foi falado, em sua grande parte, herdadas do Aborto, tais como: Que País é Este (que abria quase todas as apresentações do grupo), Conexão Amazônica, Geração Coca-Cola, Ainda é Cedo, Veraneio Vascaína, Química, etc..
Fato curioso dessa época, é que pouca gente sabia ainda que os versos de Química, que Herbert Vianna se esgoelava para cantar em Cinema Mudo acompanhado pelos vestibulandos de então, tinham já a marca de Renato Russo.
1.LEGIÃO URBANA
Em 1984, entra Renato Rocha (que integrava "CIA e dos Dentes Kentes"), vulgo Billy, vulgo Negrete no baixo. Mas por que essa entrada repentina de Rocha se já havia um baixista para o grupo? Porque Renato Russo queria ficar mais livre para cantar e porque ferimentos nos pulsos, causados por uma tentativa de suicídio, lhe haviam tirado parte dos movimentos das mãos. O grupo, apadrinhado pelos também brasilienses Paralamas do Sucesso (já que Renato, quando conseguiu o emprego de programador de uma rádio FM, conheceu o grupo, iniciando-se uma grande amizade), assina com a gravadora EMI-Odeon. "Legião Urbana", o disco, produzido pelo jornalista José Emílio Rondeau, foi lançado às vésperas do primeiro Rock in Rio, no dia 1º de janeiro de 1985, mesmo com uma certa má vontade da gravadora em divulgar o próprio produto e uma desconfiança de que a banda era somente uma aproveitadora do sucesso dos Paralamas. É estranho pensar hoje, doze anos depois, que o Rock in Rio I teve a presença de Rita Lee, Erasmo Carlos e não contou com a da Legião. Naquela época, porém, a Legião ainda não vingara. Muito pelo contrário, aliás, o próprio festival congelara o disco "Legião Urbana" por uns bons seis meses (o disco ficou hibernando nas lojas por este tempo todo), quando finalmente começou a tocar nas rádios quase faixa a faixa. O Rock in Rio, de uma maneira ou de outra, também ajudou a catapultá-lo depois. Foi no embalo do festival que Será invadiu as rádios. Essa música foi seguida por Teorema que foi seguida por Ainda é Cedo que foi seguida por Soldados, sem se esquecer ainda de Geração Coca-Cola e da belíssima Por Enquanto. Na época Renato duvidava de que pudesse alcançar o sucesso: "Acho que a Legião nunca vai ser a banda mais popular do Brasil por causa do que a gente fala". Mesmo assim o sucesso era notório, e o álbum acabou sendo eleito o melhor do ano pela revista BIZZ, que também apontou a Legião como a melhor banda, dona do melhor vocalista e compositora de melhor música: "Será". Quando a Legião saiu do estúdio, depois de um ano e meio, com o primoroso "DOIS", para muitos o melhor disco do rock nacional, as rádios ainda não tinham esgotado o primeiro LP (que vendeu até hoje uma base de 550 mil cópias, aproximadamente), com as músicas ainda estando no ar. "DOIS", por sua vez, foi intensamente explorado e representou o salto da Legião, e de Renato, para o mega-estrelato.
Será, a primeira canção do disco, começa com os seguintes versos: "Tire suas mãos de mim/Eu não pertenço a você". Parecia uma declaração de príncipios punks, autoritária e arrogante, onde o grito de independência pressupõe o corte de todos os laços (afetivo e de qualquer tipo) com o mundo ao redor e com as pessoas que vivem nesse mundo. Mas Será é antes de tudo uma canção romântica (não foi por acaso que fez sucesso na voz de Simone e no ritmo de pagode-swing do Raça Negra). O sentimento predominante na música, e nas demais faixas do primeiro disco da Legião Urbana, não é a revolta, mas sim o desamparo ("Quem é que vai nos proteger?") e a necessidade urgente da criação de uma nova comunidade, sem depender de ninguém, já que ninguém nos protege.
Essa proposta (assim mesmo desesperada e desamparada) utópica da Legião parece algo meio descrente de seus princípios, ou da existência de alguma solução para qualquer problema. Solução? Em Teorema a própria idéia de solução é colocada em suspenso: "Não sabemos se isso é problema/Ou se é a solução". Tudo é, por princípio, motivo para dúvida: "Se eu soubesse lhe dizer qual é a sua tribo/Também saberia qual é a minha" (Petróleo do Futuro); "Vivemos num planeta perdido como nós/Quem sabe ainda estamos a salvo" (Perdidos no Espaço); "Qual é a diferença?" (Baader-Meinhof Blues); "Quem é o inimigo?" (Soldados); Eu não sei mais o que/Eu sinto por você" (Ainda é Cedo).
Não era possível perceber, a partir desse disco de estréia quais seriam os próximos passos musicais da banda. Muitos pontos de vista musicais convivem em cada faixa. Muitas vozes conflitantes cantam cada letra. A Legião Urbana inaugura nesse disco todos os procedimentos poéticos que serão desenvolvidos nos próximos lançamentos. Muitas vezes quem canta é uma personagem, que pode citar (veja as letras impressas no encarte e conte o número de aspas e travessões) outras personagens. Outras vezes são contadas histórias (como em O Reggae) sem que se saiba quem está no comando da narrativa. Não existe uma visão de mundo privilegiada, não existe ideologia única, não existe futuro para quem não acredita em futuro, como a visão punk. Mas nada disso fica totalmente claro. Até porque a última canção do disco coloca tudo, mais uma vez, em suspenso, tudo parece provisório, tudo parece estar aqui apenas Por Enquanto. O disco termina com uma declaração no mínimo inesperada: "Estamos indo de volta pra casa".
3. DOIS
Em 1985 começavam os esboços do álbum "DOIS" que deveria se chamar "Mitologia e Intuição" e ser um álbum duplo. Mas a gravadora EMI-Odeon recusou-se a realizar tal projeto, acabando por lançar apenas um álbum simples. Ironia do destino, este álbum acabou sendo o de maior vendagem do grupo, atingindo na época 800 mil cópias vendidas facilmente, e até os dias atuais atingindo a marca de 1,1 milhão de cópias vendidas, com sucessos como "Índios", Tempo Perdido, Andrea Doria, Quase sem Querer, Eduardo e Mônica e Acrilic on Canvas. Todas elas saíram do vinil direto para o imaginário daquela juventude pós-ditadura que começava a entrar nas universidades. Mesmo com isso, o vocalista descartou a mitificação em torno do grupo: "Somos apenas quatro amigos que gostam de estar juntos", dizia ele. Renato com esse disco também começava a ensaiar seu adeus ao mundo público, que seria sacramentado anos mais tarde no quarto disco da banda: "As Quatro Estações"
O disco começa com uma colagem sonora onde se escuta, em meio a outros ruídos e outras músicas como o hino da Rússia, o seguinte trecho de Será: "Brigar pra quê/Se é sem querer". Mas parece que alguma coisa mudou, que as perguntas (e talvez a ausência de respostas) não incomodam tanto, que foi descoberta uma maneira de se conviver - pacificamente - com a perplexidade: "Ainda estou confuso/Só que agora é diferente/Estou tão tranqüilo e tão contente" (Quase Sem Querer). Parece que foi encontrado um antídoto contra a maldade e o erro, quase como se a resposta procurada fosse a resignação: "Nada mais vai me ferir/É que eu já me acostumei/Com a estrada errada que segui/E com a minha própria lei" (Andrea Doria).
Mas a resignação não é tudo. Em "DOIS" torna-se mais clara uma outra faceta inesperada, principalmente levando-se em conta sua origem punk, da Legião: uma "vontade" de religião e piedade. Em Baader-Meinhof Blues, do primeiro disco, já aparece um vestígio de sentimento cristão: critica-se uma sociedade para a qual "amar ao próximo é demodé". Mas em "DOIS" o que estava submerso em metáforas e ironias vem à tona: sua primeira faixa, logo a mais, digamos, "explicitamente" sexual, tem um título bíblico: Daniel na Cova dos Leões. Em Fábrica, logo a mais punk (colocando-se de lado a indignação de Metrópole), a Legião canta: "Nosso dia vai chegar" e "Quero justiça". O canto não deve ser tomado ao pé da letra. A Legião Urbana canta, mas o que é cantado não expressa necessariamente o pensamento da Legião Urbana. O eu de cada canção nem sempre pode ser confundido com o pensamento da Legião Urbana. Em Fábrica, pode estar cantando um operário. Acrilic on Canvas‚ um diálogo entre duas (ou mais?) pessoas que não sabemos quem são. Eduardo e Mônica, composição mais antiga, é uma narrativa de uma história com começo, meio e fim. O ouvinte fica sem saber da opinião do cantor sobre aquilo que canta. Nada‚ obviamente partidário ou panfletário.
Por tudo isso, a Legião nesse tempo já tinha seu espaço reservado no rock nacional. Seus shows eram famosos pela postura considerada messiânica de Renato e por um comportamento totalmente anti-pop. Não abriam shows para ninguém e não permitiam baderna de espécie alguma durante os seus shows. Há porém uma mancha nesse período de sucesso do Legião. Um show no ginásio poliesportivo de Brasília, o Nilson Nelson, em dezembro de 1986, terminou com uma menina morta e outras 20 pessoas feridas. Depois desse show, a Legião passou quase dois anos em auto exílio, sem tocar em Brasília. Mais tarde, Renato Russo desejaria que esses dois anos tivessem sido 100 anos.